Viajante das palavras

 

Um fim de tarde cinza de um começo de estio. As roupas no varal à queima do sol formavam uma carreira interminável de lençóis e roupas brancas que cuidadosamente eram colhidos um à um. O suor árduo escorrendo pela testa, os cabelos cacheados fora do lenço vermelho, o cuidado imediato para não anoitecer.

De longe avistava a caixa de correios no começo do quintal, não só estava farto de cartas como algo mais por ali. Um dramaturgo viajante das palavras, recitava sonatas ao cair a noite, e fazia poesia quando despertava a insônia frequente, como as trovinhas, rimas, bebendo quase sem respirar um barril de sangue de uvas, âmago cintilante entalando a garganta, com os olhos pousados na silhueta da moça. Aquele barbado falando de coisas loucas. Poetizava mares. Poetizava rios. Poetizava roupas limpas. Poetizava até quase morrer engasgado com as uvas verdinhas. Tais uvas com a umidade de seus olhinhos. Ela fechou os olhos e quis ir até lá , por finda sentiu medo, e ficou por ali mesmo, só observando.

Aproximou-se o barbado com as sobrancelhas arqueadas, com um "Q" de estranheza, parecia mesmo atraído pelo cheiro agradável das roupas, amaciados com um urso polar. Agarrou num único casaco vermelho, com uma carta presa entre os dentes, olhar de mistério típico de loucas aparições em lugares descritos como este...vazio. As mentes frente a frente barulhentas porém caladas, ele tapando o sol, e ela sem luz, e sem quase pensar. Ora, quem diabos raciocina com um dramaturgo com uma carta presa nos dentes em um começo de estio. Ela estendeu as mãos, e pegou de volta o casaco, e piscou os olhinhos, mas tão rápido foi, que o corpo desconhecido tomou uma nova forma...penas olhos enormes, e garras, enormes por vista. Voou para longe, com suas asas armadas sem deixar rastros se quer, apenas dúvidas... uma coruja comendo uvas com uma carta presa no bico.